Nos últimos anos, o Brasil viu ser reduzido o número de pessoas que vivem em situação de pobreza e extrema pobreza. Um conjunto de fatores contribuiu para esse cenário, dentre os quais se destacam o crescimento econômico experimentado pelo país na primeira década do novo milênio e a implementação de um conjunto de políticas governamentais de valorização real do salário mínimo e de transferência de renda.
Infelizmente, a redução da pobreza não se refletiu de modo equivalente na redução das desigualdades. É fato que também houve uma queda desses indicadores, mas os resultados não são tão satisfatórios, uma vez que as distâncias que separam os mais ricos dos mais pobres vêm sendo superadas em ritmo ainda muito lento ante a necessidade de maior justiça social. Isso significa que a sociedade brasileira continua convivendo cotidianamente com um abismo social entre os mais ricos e os mais pobres, ou seja, entre aqueles que têm garantido acesso a bens sociais fundamentais – como educação de qualidade, saúde, habitação digna, trabalho decente, lazer e cultura, entre outros – e gozam, assim, das oportunidades para o desenvolvimento de seu pleno potencial e os que vivem à margem dessa possibilidade.
Pesquisas nacionais e internacionais evidenciam a gravidade das disparidades socioeconômicas no Brasil. O World Income Inequality Database, produzido pelo Instituto Mundial de Pesquisas de Economia do Desenvolvimento da Universidade das Nações Unidas (UNU-Wider), revela que, no ano de 2008 – período em que o país via despencar os indicadores de pobreza e extrema pobreza –, numa lista de 151 países, o Brasil figurava como o sétimo com o pior índice de Gini, que é um importante indicador de desigualdade. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad-IBGE, 2012) revelam que esse mesmo índice tem caído em ritmo muito lento no que diz respeito ao mundo do trabalho e que, além disso, o grupo que apresentou maior aumento de rendimento entre os anos de 2011 e 2012 foi o de 1% dos mais ricos do país, cuja participação no total de salários pagos subiu de 12% para 12,5% naquele período.
Diante desses dados, é forçoso reconhecer que o fim da miséria é apenas o início de um processo e que a próxima agenda a ser enfrentada é a do desenvolvimento com enfrentamento da desigualdade.1
Uma análise das estatísticas e indicadores sociais permite afirmar que, no Brasil, a desigualdade se estrutura especialmente diante da fronteira racial. Fronteira que, ao separá-la em dois grupos majoritários (negros e brancos), também a divide em dois segmentos distintos quanto ao nível de desenvolvimento humano: o grupo dos brancos, que, em 2013, apresentou um alto nível de desenvolvimento, com um IDH de 0,735, e o dos negros, para os quais, naquele mesmo período, foi computado um IDH de 0,645, que representa um nível médio de desenvolvimento.2
A diferença de acesso dos dois grupos à renda e direitos sociais básicos é também revelada quando analisamos que a população negra permanece sub-representada entre os brasileiros mais ricos e sobrerrepresentada entre os mais pobres. Segundo cálculos do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) para o ano de 2009, entre os 10% mais ricos da população, apenas 24% eram negros, enquanto, entre os 10% mais pobres, estes correspondiam a 72%.3
No entanto, a raça, que é de fato o principal limite na demarcação da desigualdade entre os grupos sociais no país, não atua sozinha. O sexo também determina as trajetórias dos indivíduos. Logo, na avaliação das desigualdades entre os grupos sociais se faz também necessário observar essa variável. Segundo dados das últimas Pnad, quando consideramos esses dois limites (raça e sexo), mais de 99% dos brasileiros podem ser classificados em um dos quatro grupos sociais majoritários: mulheres negras, homens negros, mulheres brancas e homens brancos, sendo que tais grupos se subdividem diante de outros limites classificatórios.
Uma análise dos indicadores sociais de rendimento do trabalho e educação revela que a classificação de um indivíduo em cada um desses grupos explica, pelo menos em parte, a sua trajetória no mundo do trabalho. Mostra, por exemplo, que as mulheres brancas estão sub-representadas nos escalões mais altos das organizações, em que pese o fato de pertencerem ao grupo mais bem formado do país. Também demonstra que as mulheres negras constituem o grupo que goza de menos oportunidades de trabalho e fica com o menor retorno esperado pelo investimento em educação, encontrando-se sobremodo sub-representadas nas grandes corporações.
Mas o que as empresas têm a ver com essas questões, que a princípio podem parecer de natureza mais sociológica que organizacional? Como já foi sugerido em outros estudos, podemos considerar que as desigualdades sociais tenham como uma de suas causas certos “mecanismos sócio-organizacionais típicos do funcionamento do mercado de trabalho”4. O que implica dizer que o modo como as empresas e demais organizações se relacionam com cada um daqueles quatros principais segmentos em muito explica o nível de desigualdade da sociedade brasileira
As estatísticas apontam, por exemplo, que as desigualdades raciais e de gênero são reproduzidas no mundo do trabalho e, diante disso, que empresas e demais organizações empregadoras são, junto com o governo, responsáveis pela instalação e perpetuação de um sistema socialmente injusto, uma vez que deixam de adotar medidas necessárias para a superação desse quadro, com especial atenção ao setor empresarial, uma vez que se constitui no núcleo por excelência da distribuição de renda e oportunidades.
O que, então, as organizações podem fazer para contribuir para a superação das desigualdades sociais no Brasil? Em primeiro lugar, existe a necessidade de um redimensionamento do problema. Algumas iniciativas empresariais – como, por exemplo, aquelas voltadas para a valorização da diversidade, responsabilidade social e ação social – devem ser reavaliadas e certamente reclassificadas, de modo que sejam incluídas na esfera da sustentabilidade, que, na maioria das vezes, ainda caminha manca, considerando apenas a dimensão ambiental e a econômica e negligenciando quase que totalmente a dimensão social do conceito.
O conceito de desenvolvimento sustentável, que, num primeiro momento, supervalorizou os aspectos ambientais, tem sido renegociado para incluir de modo mais efetivo as questões relativas à sua dimensão social. Com isso, enfatiza a promoção da igualdade, a inclusão social e a igualdade de raça e gênero, entre outros fatores, como metas importantes a serem perseguidas na busca do que verdadeiramente poderemos chamar de desenvolvimento.
Diante disso, argumentamos que as empresas precisam adotar medidas especialmente direcionadas para a superação das desigualdades sociais e sugerimos alguns caminhos.
Primeiro, faz-se necessária uma revisão de seus processos internos de contratação, promoção e remuneração, além da diversificação das fontes para recrutamento de trabalhadores para as posições de níveis hierárquicos mais elevados. O fato de existirem poucos trabalhadores negros em posições de médio a alto escalão não é explicado apenas pela suposta baixa capacidade técnica desses profissionais. É verdade que, historicamente, mulheres e homens negros sempre tiveram menos oportunidade de acesso à educação formal (e, especialmente, à educação formal dita de qualidade), que é privilegiada no mundo corporativo. Mas alguns estudos já demonstram que esse elemento isoladamente não justifica a quase completa ausência deles nas posições de gestão das organizações. As empresas precisam assumir que há vícios em suas práticas internas e que a revisão dos processos implica não apenas a reformulação dos fluxos, mas também a formação dos gestores no tema promoção da igualdade, de um modo geral, e promoção da igualdade racial, muito especificamente, dada a importância desse componente na explicação das desigualdades sociais no país.
A área de gestão da diversidade das empresas também precisa aliar suas ações a partir de dois valores principais: a valorização da diversidade e a equidade. Num país como o Brasil, há de se questionar, inclusive, o que temos chamado de mérito e como e para que finalidades esse princípio tem sido utilizado.
De fato, diversos setores das organizações devem ser envolvidos nesse processo, e não apenas aqueles vinculados à área de gestão de pessoas. O setor de marketing e comunicação, que, por meio de peças publicitárias, apresenta a cara da empresa para o público interno e externo, precisa participar desse diálogo e identificar como, por meio de seu trabalho, as organizações discriminam e reproduzem desigualdades sociais e, a partir daí, rever suas práticas, especialmente aquelas relacionadas às imagens com que fazem representar as empresas. Como conceber, num país de maioria negra, peças publicitárias e desfiles de moda, por exemplo, com baixa ou nenhuma representatividade de modelos e manequins negras e negros?
Finalmente, devemos destacar aqui que os setores de responsabilidade social e investimento social privado também lucrarão enormemente ao ingressarem nesse diálogo. A ampliação da visão acerca dos problemas sociais do país possibilitará uma aplicação mais heterogênea dos recursos destinados à ação social. Como sugere a “Visão ISP 2020”, do Grupo de Institutos Fundações e Empresas (Gife), o setor de investimento social privado precisa ser mais abrangente e distribuir de forma mais equitativa e equilibrada seus recursos, para que estes possam alcançar todas as áreas relevantes para o desenvolvimento social brasileiro. O que implica diversificar os investimentos sociais – que hoje estão muito concentrados nos temas educação, cultura e juventude – para outras áreas, tendo como referência também a dimensão geográfica e populacional.
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