Quem se depara pela primeira vez com a realidade do isolamento da Floresta Amazônica se surpreende com a felicidade da vida ribeirinha. O povo adora uma celebração; as festas varam a noite até o raiar do dia, no embalo de muita música, comida e bebida. Ao final, a montanha de resíduos gerados pela farra chama atenção. Em qualquer outro lugar do País, a primeira providência seria varrer o lixo, ou pelo menos escondê-lo. Mas ali é diferente: copos, latas, plásticos, garrafas e demais objetos descartáveis têm valor para a autoestima. De certa maneira simbolizam status, riqueza e poder, situação perfeitamente compreensível para quem não faz muito tempo dependia de produtos in natura, conquistou acesso ao consumo e mudou de hábito.
A ascensão econômica e social é mais do que justa. Mas a enxurrada de produtos industrializados e suas embalagens acendeu o sinal de alerta na floresta. E passou a exigir ideias inovadoras para que as mercadorias que entram na rotina diária não prejudiquem a qualidade de vida.
A solução surgiu na comunidade Três Unidos, habitada por índios da etnia Kambeba, na Área de Proteção Ambiental do Rio Negro, nos arredores de Manaus (AM). No local foi instalado um inusitado galpão de triagem, adaptado às condições do lugar, para recebimento do lixo reciclável recolhido pelos moradores em 16 povoados ribeirinhos. A principal novidade está na logística, que exigiu o projeto de recipientes customizados para embarque nas lanchas do transporte escolar, responsáveis por levar os materiais até uma cooperativa de catadores da capital amazonense. De lá, o papel, por exemplo, é vendido a um depósito atacadista que junta maior quantidade para abastecer uma fábrica de papelão em Pernambuco.
“Empreendedorismo caboclo” valoriza o lado humano do bioma
Pela primeira vez, a reciclagem chega a uma área protegida como reserva ambiental. “Não foi fácil conscientizar as famílias e agora já notamos que o número de casos de diarreia diminuiu”, conta o pajé Valdemir Triukuxuri. O hábito era queimar o lixo ou jogá-lo no rio como algo que a natureza se encarregaria de eliminar, assim como faziam pais e avós com as sobras de frutos, peixes e outros itens orgânicos mais tradicionais do consumo na floresta.
A rotina começou a mudar com a central de resíduos, construída em lugar nobre da comunidade, à vista de todos. “A ideia neste momento não é gerar escala, mas sensibilizar os ribeirinhos para a questão”, explica Fernando von Zuben, diretor de meio ambiente da Tetra Pak, fabricante de embalagens longa vida que apoia o projeto, em parceria com a Fundação Amazonas Sustentável (FAS).
A iniciativa ilustra o desafio da inovação na Amazônia, centro das atenções globais devido à importância para o equilíbrio climático. “O esforço não deve estar na sofisticação, mas na relevância das soluções, muitas vezes simples e de baixo custo, capazes de resolver entraves do desenvolvimento sustentável”, diz Virgílio Viana, superintendente geral da FAS.
Os avanços vão desde um trepador mecânico para subir mais fácil e rápido na palmeira de açaí e coletar o fruto até um modelo inovador de saúde pública com roteiro de visitas domiciliares a mães e crianças por entre rios e igarapés.
“Em vários casos, o pulo do gato está em vencer o isolamento”, ressalta Viana, ao informar que o desafio inspirou a criação da Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável da Amazônia, de modo que boas ideias sejam compartilhadas entre os sete países do bioma. A iniciativa, integrante de um projeto global das Nações Unidas, lançou neste ano um prêmio para reconhecer e replicar as melhores soluções.
“Temos como negócio o convívio com o lado humano da floresta, onde há culturas tradicionais e modos peculiares de produção que precisam ser valorizados, para além das cobras e jacarés normalmente mostrados aos visitantes”, diz Alexander Guimarães, à frente da start-up Amazon Share, voltada para o turismo comunitário. O projeto se destacou no desafio de inovação “The Boat Challenge”[1], promovido pela Coca-Cola para identificar ideias práticas capazes de mudar a realidade socioambiental de Manaus. Nas vilas, jovens nativos aprendem contabilidade e são mobilizados a montar negócios, como mercearias e confecção de camisetas e artesanato, no conceito de “empreendedorismo caboclo”.
Energia solar portátil
O Rio Negro, no Amazonas, é rota de experimentos com potencial de beneficiar toda a região, caso sejam integrados a políticas públicas. Longe da rede elétrica, a comunidade Tumbira, onde há um núcleo de educação para o uso sustentável da floresta, é abastecida por um sistema híbrido, parte painéis solares e parte óleo diesel, em fase piloto de testes mediante parceria com a Schneider Electric.
A inovação garante o funcionamento de uma microagência bancária do Bradesco que permite saques, depósitos e transferências. Em vez de pagar caro pelo transporte fluvial para receber salários, benefícios ou aposentadorias na capital, os ribeirinhos têm acesso ao dinheiro na própria comunidade, com o uso de cartão magnético, e com ele movimentam a economia local. O “banco” é operado por um ex-madeireiro ilegal, Roberto Brito, hoje dedicado a mostrar para visitantes a floresta bem conservada e as novidades que chegam por lá – inclusive a internet.
A questão da energia é obstáculo em grande parte da Amazônia, onde a mesma floresta que captura e estoca carbono da atmosfera é dona de uma matriz energética [2] suja, que emite gases de efeito estufa, à base de usinas termelétricas e pequenos geradores a óleo diesel, caros para os padrões da região. Para viabilizar a purificação da água servida aos índios das etnias Deni e Kanamari, no Rio Xeruã, o pesquisador Roland Vetter, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), desenvolveu um equipamento solar portátil que reduziu em 80% as doenças associadas à contaminação hídrica por esgoto. “A poluição passa a ser um problema quando as populações indígenas deixam de ser nômades e se concentram em um único local”, explica o cientista.
O método trata a água mediante a incidência de luz ultravioleta, com bateria que garante o funcionamento por cinco dias sem sol. Depois de patenteada, a tecnologia foi transferida para uma empresa do Amazonas que disseminará os equipamentos no mercado, com pagamento de royalties ao Inpa e aos inventores. Pela primeira vez em sua história, a instituição, criada há 62 anos como resposta às ameaças de internacionalização da Floresta Amazônica, será remunerada por uma inovação. Há outras 71 em carteira, já com depósito de patente, à espera de interessados. A próxima novidade a chegar ao mercado deverá ser a sopa de piranha desidratada, de efeito afrodisíaco. Além dela, estão em teste novos cosméticos e remédios, obtidos do gengibre amargo [3].
A chave saber quais espécies vegetais existem na Amazônia, onde estão e qual a chance de serem comercialmente aproveitadas. Em Belém, o Museu Emílio Goeldi guarda coleções científicas centenárias, fiéis depositárias da flora e fauna. Com 209 mil amostras de plantas, o acervo é estratégico na defesa contra a biopirataria. Mas metade dos pesquisadores da instituição está apta a se aposentar, colocando em risco a continuidade de trabalhos, como os estudos com a “terra preta” – tipo de solo milenar, rico em matéria-orgânica proveniente do lixo de populações ancestrais, cobrindo 18 mil quilômetros quadrados da floresta. Pesquisadores reproduziram o material no laboratório, imitando a natureza, e patentearam o processo para aplicá-lo na produção agrícola. “Não é por falta de pesquisa que há deficiência de políticas para o desenvolvimento sustentável”, avalia Ilma Vieira, coordenadora de biodiversidade do Museu, fundado em 1866 por intelectuais que pretendiam dar “aparato civilizatório” à capital paraense.
“Apostamos no diferencial da região para acesso a novos suprimentos, mas o desafio é tão grande quanto o potencial”, avalia Iguatemi Costa, gerente do Núcleo de Inovação Amazônia (Nina), da Natura, em Manaus. Desenvolvimento territorial e empreendedorismo são panos de fundo na busca por formas alternativas de capturar valor na sociobiodiversidade. “Existe massa crítica, mas são necessárias políticas públicas para que haja um ambiente favorável a mais iniciativas e investimentos de longo prazo, com desdobramento na economia florestal [4]”, completa Costa.
A estratégia da empresa na região é trabalhar em rede, mapeando competências em frentes como a formação de lideranças e a interface entre floresta e agricultura para dar escala [5] a ingredientes da biodiversidade. O olhar nas cadeias produtivas procura incluir tecnologias que as tornem mais eficientes, com garantia de qualidade do insumo antes da chegada às fábricas. Para Costa, a reforma da lei brasileira de acesso ao patrimônio genético tende a impulsionar inciativas de bioprospecção, apesar de a logística amazônica de pesquisa ser cara.
Arranjos colaborativos são a saída: “Buscamos agora novas essências para perfumaria, em cooperação com universidades, e começamos a preparar o campo para trabalhar pela primeira vez com comunidade indígena”. Entender o conhecimento tradicional e a visão de mundo ribeirinha é o primeiro passo para valorizá-lo.
Referências
[1] A iniciativa selecionou 35 empreendedores sociais que receberão investimento para a transformação de seus projetos em negócios, cinco deles incubados na sede da FAS.
[2] No Amazonas, 82% da energia provém de termelétricas e 18% de hidrelétricas. Quase metade da energia distribuída é furtada, gerando perda de R$ 1,3 bilhão por ano à companhia elétrica.
[3] O extrato de zerumbona, obtido da espécie Zingiber zerumbet, compõe um gel utilizado com bons resultados para tratar ferimentos em diabéticos
[4] A produção da floresta nativa na Amazônia gira em torno de R$ 9 bilhões ao ano, segundo o IBGE. Os destaques são madeira tropical serrada e, mais recentemente, o açaí
[5] De todos os insumos da biodiversidade consumidos pela Natura, 13% provêm da Amazônia. A meta é aumentar para 30% até 2020.
(Página 22/ #Envolverde/Utopia Sustentável)
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