sexta-feira, 1 de julho de 2016

A vida é muito curta para morar no Rio


Antes de ser apedrejado por cariocas que como eu adoram a cidade, gostaria de dizer que tenho total convicção de que muitas coisas narradas ai embaixo acontecem igualzinho em várias cidades brasileiras.  O que me fez replicar o texto, e talvez  esse seja o ponto, é nossa inércia diante de tantos absurdos, a tolerância com o errado.  Nos conformamos com as desculpas eternas de balas perdidas, com UPAS que não funcionam, com UPP's que continuam matando nossos jovens, com nossa Câmara e Assembleia repleta de bandidos, com as promessas seculares de limpeza da Baía de Guanabara e Lagoa Rodrigo de Freitas, com as escolas que oferecem péssima qualidade de ensino a nossas crianças, com os roubos de medicamentos, com o tráfico, com o jeitinho, com os caveirões que entram a qualquer hora em nossas comunidades arrebentando tudo e todos.
Por mais que grande parte desses problemas sejam nacionais, esse nosso conformismo é irritante, dilacerante, e é isso que talvez esteja levando 56% de nós a buscar, se houver a chance, um outro lugar para morar.  Infelizmente.
Foi um desabafo da Mariliz, mas é um desabafo meu, que tenho sentido dia após dia, cada vez mais.   Um olhar crítico de quem está do lado de lá.
É isso aí, fala Mariliz.
Odilon de Barros


Eu era a paulista mais carioca que meus amigos conheciam. Tinha a tal alma, roupas coloridas, conta na barraca do Leandro, no Posto 12, mesa cativa no Jobi, chamava os garçons pelo nome, tomava cerveja na calçada, banho de mar à noite no verão. Estava com uma mala sempre pronta, e a poltrona 8F no avião religiosamente reservada para ver lá de cima a cidade chegando.
A vida é muito curta para não morar no Rio, diziam. Eu ria, mas voltava feliz para o meu caos organizado em São Paulo, às segundas pela manhã. Até que uma proposta de trabalho me trouxe de mala e mudança. Depois do primeiro mês, a lua de mel com a cidade acabou e eu me perguntava: como as pessoas moram aqui?
Demorou, mas não sou mais solitária nesse questionamento. Vejo amigos e conhecidos compartilhando em redes sociais uma pesquisa feita pela ONG Rio Como Vamos, que mostra que 56% da população tem vontade de ir embora da cidade. Em 2011 esse percentual era de 27%.
O que faz os moradores quererem fazer as malas é o aumento da violência. Roubos na rua assustam mais as classes mais altas, enquanto as balas perdidas são o terror na vida da população menos favorecida. Mas os problemas do Rio vão muito além disso, e é um espanto que apenas tiro, porrada e bomba tenham acendido o alerta de que a Cidade Maravilhosa é uma farsa. Uma paisagem espetacular, recheada de problemas escandalosos.
Essa visão de que o Rio é o melhor lugar do mundo para se viver é um tanto provinciana e romântica, além de cega, de uma maioria que mora e trabalha na zona sul –e parte da zona oeste– e só de vez em quando tem o doce cotidiano chacoalhado pela violência que atravessa o túnel Rebouças. Gente que vive numa bolha, que eventualmente estoura num assalto com morte.
Vida que segue. A gente se deslumbra com a belezura da geografia e aprende a conviver com malandragem generalizada, falta de pontualidade, incompetência disfarçada de informalidade, hostilidade travestida de espontaneidade, infâncias miseráveis, pobreza, falta de tudo.
O Rio é só uma cidade decadente que vive de um glamour passado, num presente melancólico. E parte da sua população sempre foi conivente com tudo que nos fez descambar para essa triste realidade. Como fechar os olhos para uma parte gigante da cidade que apenas sobrevive?
Praias, lagoas e baía não ficaram poluídas da noite para o dia. Ainda assim, as areias estão sempre cheias, mesmo nos dias em que o mar não está nem para peixe nem para gente. O negócio é mergulhar no cocô para se refrescar, tomar uma cervejinha e tirar foto do pôr do sol. Com sorte, daqui uns anos ainda reste o pôr do sol.
Chamar favela de comunidade não muda o fato de que centenas de milhares de pessoas continuam vivendo sem saneamento, sem saúde, sem educação, reféns ora do tráfico ora da milícia. Mas é bonito subir o morro, ir ao sambinha, postar foto na "comunidade" e fazer de conta que ela está integrada. Não está. Fica bonito na letra de música, na poesia, mas é apenas gente esquecida –e tolerada– em troca de status de cartão postal.
Mas tudo bem, a gente dá uma maquiada, ergue muros nas linhas Amarela e Vermelha para que os turistas não vejam o lado mais feio, miserável e perigoso da cidade –além de evitar que balas atravessem a pista e matem os desavisados. De quebra, nós mesmo esquecemos que existe o lado mais feio, miserável e perigoso por onde só passamos a caminho do aeroporto.
O coro de "nunca pensei que diria isso, mas penso em ir embora do Rio", tomou o lugar de posts babaovistas com legenda "Rio, eu amo eu cuido", "Eu moro onde as pessoas passam as férias". Férias é somente o que uma pessoa com juízo faria aqui. Vem, passa o dia na praia, torce para não ser vítima de um arrastão, passeia pelos pontos turísticos, toma um chopp aguado, come um bolinho no Braca, vai no ensaio da escola de samba, se o tráfico não estiver em pé de guerra, pega o avião a vai embora.
Para quem mora aqui, o jeito é torcer. O que nem sempre é suficiente. Para muita gente a vida tem sido muito curta para morar no Rio. Juan, um ano e dois meses. Giselle, 34. José Josenildo, 31. Foram mortos nas últimas semanas. Bala perdida. Tentativa de assalto. Emboscada. Não há paisagem que valha a pena morrer tão cedo.
Obviamente, criminalidade, pobreza, corrupção e falta de toda a sorte de serviços básicos são problemas em maior ou menor grau em todas as capitais brasileiras, mas nenhuma se vende como Cidade Maravilhosa. E antes que algum ofendido venha me mandar embora, só tenho uma coisa a dizer: é o que eu mais quero. Eu e os 56% dos moradores do Rio. 
Mariliz Pereira Jorge/Folha/Uol/Utopia Sustentável

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