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segunda-feira, 11 de maio de 2015

Panorama de uma Amazônia em transe


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SantaremAmazonia
Numa cidade-símbolo dos impasses da região, soja e gado, avançando sobre a mata. Extrativismo sustentável. Agricultores que resistem. As ONGs e os povos da floresta

A viagem ao Brasil teria como motivo a carne bovina: a pecuária tem sido um dos principais motores do desmatamento na Amazônia. Acharíamos algum fazendeiro amistoso que nos daria informações privilegiadas sobre como a floresta virgem estava se transformando em hambúrgueres. Mas logo tomamos conhecimento da soja. Os agricultores estavam nivelando grandes extensões de floresta para produzir ração para animais e vender para a Europa.
Abandonamos o mote da pecuária e escolhemos Santarém como destino, cidade com um porto controverso, construído pela multinacional Cargill para exportar soja da Amazônia. Em Santarém, veríamos tudo: a selva imaculada, a floresta sendo devastada, os campos de soja e o porto, cruel punhal do agronegócio fincado no coração verde pulsante do mundo. Pelo menos, essa era a minha expectativa.
Então, como uma punição, Adam apareceu em meu escritório usando uma viseira verde e sacudindo um monte de papéis: o governo brasileiro acabava de anunciar um recorde de baixas taxas de desmatamento em 2010, as menores taxas de desmatamento já registradas. Filhos da mãe! Desde quando? Eu sempre achei que o desmatamento era como a morte ou os impostos. Ouvia sobre a destruição inexorável das florestas tropicais desde criança. E agora vinham me dizer que não era assim? Mas não importava, já tínhamos nossas passagens.
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Cidade alegre e agradável, com 250 mil habitantes, Santarém ocupa um canto amplo da margem onde o Amazonas encontra o seu poderoso afluente Tapajós. Saímos do hotel em busca de Gil, nosso guia e tradutor. Embora ele tivesse sido muito bem recomendado, eu estava um pouco apreensivo. Nos últimos dias, ele tinha me enviado emails erráticos que culminaram numa encomenda abrupta de eletrônicos. “Você pode me trazer um iPod Touch 4G de 32GB?”, ele escreveu. “Minha namorada está grávida e, se você me trouxer dois, batizo nosso filho com o seu nome”.
Como descrever Gil Serique? Um filho da floresta, nascido na selva às margens do Tapajós, numa vila sem eletricidade ou água corrente, acessível apenas por barco. “O paraíso!”, ele dizia. Agora era um guia poliglota, tradutor e cicerone para jornalistas visitantes e, acima de tudo, um típico vagabundo de praia da Amazônia, praticando wind-surf sempre que podia, lançando-se ao rio após simplesmente atravessar a rua de casa.
Gil assediava passantes com folhetos para promover seus serviços de guia, travava amizades com operadores de cruzeiros que passavam por Santarém, atualizava obsessivamente seu blog e seu status no Facebook (eram 3.103 amigos na última contagem). Sua casa era um ponto de encontro para qualquer um que se interessasse ​​na floresta, na destruição da floresta, ou em surf, bebidas e conversa.
Nossa conversa finalmente tocou no desmatamento e na soja. A Amazônia é uma fronteira sob influência sucessiva de novas corridas. Nos últimos cem anos ela presenciou os ciclos da borracha e da madeira e a corrida do ouro. Agora, eram a soja e a bauxita. E a exploração se dava de muitas formas. Na opinião de Gil, no entanto, ela tinha um outro lado. “Consegui um trabalho muito mais interessante depois do início da devastação da Amazônia”, ele disse. “Normalmente, estaria guiando amantes da natureza, mas como o interesse pela preservação da Amazônia aumenta, trabalho cada vez mais com pessoas como vocês, que querem ver os problemas da natureza.”
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BR163A BR-163 começa em Cuiabá, no extremo sul do Mato Grosso, e segue para o norte por mais de mil quilômetros, mergulhando diretamente na Amazônia. Construída no início da década de 1970, ainda está praticamente sem pavimentação nos trechos da selva e, durante a estação das chuvas, torna-se um rio de lama. Caminhões atolam em suas lendárias trilhas e buracos, e chegam a avançar menos de 100 quilômetros por dia. A BR-163 é sem dúvida uma das mais deploráveis estradas do mundo. No entanto, ela tem a peculiaridade de ser uma das duas únicas estradas que atravessam a Amazônia de norte a sul e, como tal, é foco não apenas do comércio mas também de muita ansiedade ambiental. Como Gil tinha mencionado, estradas trazem desmatamento. Você só derruba as florestas que pode alcançar, e só transforma selvas em fazendas se tem uma forma de escoar a carne ou a soja.
Uma vez que há uma estrada – mesmo sendo uma porcaria de estrada como essa – a civilização se forma ao longo dela, empurrando as bordas da floresta. Imagens de satélite mostram que, até o ponto em que atinge o Rio Tapajós, a BR-163 está produzindo terra devastada em cortes densos e perpendiculares, cada um com uma dúzia de quilômetros de comprimento, como os dentes de um ancinho gigante.
A estrada termina, finalmente, em Santarém, no extremo oeste do cais. E é exatamente aqui, e não a uma centena de metros do local onde a BR-163 fica sem continuação, que a Cargill Incorporated de Minnetonka, Minnesota, construiu o seu terminal de exportação de soja.
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A construção do porto de Santarém começou em 1999 e foi concluída em 2003, apesar da Cargill não ter feito o estudo de impacto ambiental solicitado, fato que resultou em sucessivas declarações de ilegalidade do terminal por parte dos tribunais brasileiros. No entanto, ele começou a funcionar.
Para a Cargill, a maior empresa privada dos Estados Unidos, a construção do terminal foi um movimento estratégico que permitiu que a soja chegasse ao mercado de forma mais rápida e barata do que antes. A soja do Mato Grosso podia embarcar para o norte pelo rio ou ir de caminhão pela BR-163. No terminal de Santarém, a soja podia ser descarregada e armazenada antes de embarcar diretamente para a Europa através do rio Amazonas.
CargillFoi um incentivo, também, para os agricultores do Mato Grosso. Por que mandar apenas a colheita para o terminal da Cargill se era possível mandar a fazenda inteira? A terra era barata em torno de Santarém, e uma fazenda de soja construída próxima ao terminal da Cargill economizaria tanto na terra como nos custos de transporte. Os fazendeiros rumaram em peso para o norte. Em 2004, um ano após a abertura do terminal, o cultivo da soja na área saltou para 35 mil hectares (um aumento de mais de 2.000% em cinco anos).
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Nosso motorista, um homem animado e corpulento cujo apelido era Manga, acelerou impulsivamente rumo ao sul. Lá encontraríamos pessoas que passavam os dias derrubando árvores na floresta tropical. Mas era tudo perfeitamente legal, parte de um projeto sustentável de exploração madeireira. Nada para ficar alarmado, infelizmente.
Chegamos ao local por volta das 7 da manhã. Os madeireiros estavam reunidos em uma sala no edifício principal. Homens e mulheres de capacete e roupa de trabalho organizaram-se em círculo e fizeram pronunciamentos. Houve risos e aplausos. Eles deram as mãos e fizeram uma oração. Depois fomos todos para fora e entramos na traseira de um caminhão grande que sacolejou por uma estrada de terra esburacada na direção do rio Tapajós, no coração da floresta. Estávamos visitando o projeto AMBÉ.
A atividade madeireira em uma floresta protegida é provavelmente abominável para a maioria das pessoas, pelo menos para os que não são madeireiros. Afinal, o que protegido significa de fato? Aqui no Tapajós, entretanto, um grupo de pessoas que vivem à margem da floresta teve a concessão para a exploração “sustentável”. A ideia é que isso possa oferecer alternativas à agricultura de coivara e ao desmatamento ilegal, proporcionar desenvolvimento econômico e melhorar o padrão de vida da comunidade sem degradar severamente a floresta. É fundamental que as pessoas que ganham dinheiro com a floresta sejam de lá. Uma vez que estão vivendo dela, tornam-se os principais interessados na sua preservação: a comunidade só pode ser sustentada pela floresta se a floresta continuar a existir.
O ar mudou quando entramos na floresta, tornando-se de repente rico e terroso, o calor do dia amenizado pela umidade e pela sombra. O caminhão nos deixou e foi embora, e acompanhamos uma equipe de levantamento na sua ronda matutina. Cascatas de ruído de insetos, um ruído quase eletrônico, e o som das chamadas e respostas: a paisagem sonora faz a selva.
Eu imaginava que uma exploração sustentável da madeira envolveria uma dezena de pessoas boazinhas ​​e uma motosserra. Em vez disso, encontrei, junto com as pessoas boazinhas, maquinaria pesada e um negócio de verdade. Poderia ter tirado fotos que pareceriam o pesadelo de qualquer preservacionista – caos de toras e lama.
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Durante o café da manhã, enquanto planejávamos o nosso dia, um norte-americano forte e de meia-idade aproximou-se da nossa mesa e começou a conversar com Gil sobre wind-surf. Então ele se virou para mim com um cartão de visita na mão: era Rick, um homem de Michigan que é dono de sua própria floresta. Ele disse que havia uma série de equívocos por aí sobre a Amazônia e a atividade madeireira e achou, evidentemente, que a minha presença em Santarém era uma oportunidade única para contar a sua história.
Gado1-485x364“Nos Estados Unidos, costumavam mostrar na televisão terrenos baldios queimados e, nesse cenário, um caminhão de madeireira”, disse ele. “A suposição era de que os madeireiros devastavam a terra e esvaziavam o lugar, mas não é bem assim.” Segundo Rick, de todas as árvores que crescem na floresta tropical, apenas 5 ou 6 espécies são comercialmente viáveis. O desmatamento na Amazônia sempre foi extremamente seletivo. “Se não houvesse a criação de gado e o cultivo de soja, uma pessoa comum não seria capaz de sentir a falta de uma única árvore. Não há mercado para 94% da floresta.” Rick sabia, porém, que era mais complicado do que isso. “A pior coisa que os madeireiros fazem é abrir estradas”, admitiu. Isso cria o acesso para a agricultura comercial. Mais tarde, falamos com um de seus colegas sobre isso e ele reafirmou: “Os madeireiros não destroem a floresta, mas abrem as portas”.
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Desanimado com o fracasso do Brasil em protagonizar o seu papel na história do horror ambiental, pedi socorro à Igreja Católica. Adam tinha descoberto um padre ativista que prometeu nos dizer coisas inflamatórias e pessimistas sobre a situação da Amazônia. Procuramos pelo padre Edilberto Sena não na sua igreja, mas na sua estação de rádio, o que testemunha a sua proximidade com a teologia da libertação. Ele nos disse que o desmatamento era apenas uma parte da história.
“Perguntamos ao governo: ‘por que insistem nos grandes projetos de hidrelétricas na Amazônia?’ Eles planejam construir 38 hidrelétricas na Amazônia!” Sena trouxe o mesmo espírito desafiador para a luta contra o cultivo de soja. A organização fundada por ele, Frente de Defesa da Amazônia, tinha uma parceria com o Greenpeace para protestar contra o terminal da Cargill. Mas a colaboração não durou muito. “O Greenpeace tem dinheiro. Mas isso não ajuda muito quando você não tem um ponto de vista holístico. Eles defendem a floresta e os animais mas esquecem-se de que o ambiente inclui as pessoas que vivem aqui. Essa é a diferença: nós defendemos o nosso povo.”
Sem levar em conta as pessoas – no ativismo e nos parques nacionais – algo essencial fica faltando. E Sena não se referia apenas às populações indígenas. Incluía também os pequenos produtores rurais que haviam sido deslocados por causa da soja e as mais de 20 milhões de pessoas espalhadas pela bacia amazônica, seja no campo ou em grandes cidades como Manaus. “Antes de 2000, não conhecíamos a soja”, disse. Mas em 2001 os fazendeiros da soja começaram a aparecer. “Chegavam com dinheiro e compravam a terra”, disse enfaticamente. “Não vieram para viver aqui. Vieram só para cultivar.”
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Descemos a BR-163 no carro de Manga para nos encontrarmos com Nestor, um pequeno agricultor que tinha sobrevivido à febre da soja, mantendo a sua fazenda. Nestor nos vendeu cervejas e nos levou para um passeio nos seus campos de mandioca. “Antes tinha muita gente que vivia aqui e possuía pequenas propriedades”, disse. Mas nos primeiros 5 anos da década de 2000, os compradores do sul fervilhavam e disputavam terra. A maioria vendeu. “Venderam a terra. Os tratores vieram e acabaram com tudo.” Paca, uma pequena cidade próxima, havia sido completamente apagada do mapa para dar lugar à soja. Até mesmo o terreno da igreja pentecostal do lugarejo tinha sido vendida. “Derrubaram a igreja para plantar soja”, disse o filho de Nestor, rindo. “Você nem imagina que antes tinha uma igreja lá.” Nestor culpou os políticos locais, que, segundo ele, trouxeram a Cargill: “O governo convidou essas pessoas para trazerem o progresso. E talvez tenham trazido mesmo, mas junto trouxeram muita coisa ruim…”
O frenesi tinha mudado o ambiente local, de forma sutil mas óbvia. Encontramos diversos agricultores que se queixaram sobre os produtos químicos que as fazendas de soja vizinhas usavam no cultivo e sobre como a monocultura da soja tinha aumentado as pragas nas pequenas propriedades próximas. “Há muita doença nesses campos”, alegaram sobre os campos de soja. “Planto arroz e não colho nada. Se planto feijão, os insetos comem tudo. Não conseguimos colher nada.” Um homem me disse que os produtores de soja só conseguiam prosperar por causa dos fertilizantes. Disse também que as largas aberturas de terrenos no território modificaram os ventos e a temperatura, e que a simples ausência de sombreamento piorava a vida ao redor. Quando antes andavam grandes distâncias em um dia de trabalho, agora a grande extensão das fazendas de soja significava menor proteção do sol escaldante e, logo, menores distâncias caminhadas.
Aqueles que tinham vendido as terras e se mudado para Santarém se arrependeram e queriam voltar. Outro pequeno agricultor que encontramos na estrada confirmou a informação: “Muitos pensavam que, uma vez na cidade, o dinheiro nunca se acabaria”, disse ele. “Mudaram-se para a cidade, compraram casa, TV, geladeira. Mas não investiram na educação e acabaram sem emprego. Quando o dinheiro acaba e eles não têm trabalho, lamentam ter vendido a terra.”
Não paramos de ouvir comentários sobre famílias que se arrependeram de ter vendido suas propriedades – vindos de Nestor, de outros fazendeiros e do padre Sena. Aqui, a preocupação acerca dos efeitos da soja na floresta era menos manifesta do que os seus efeitos na sociedade, sobretudo no empobrecimento das pessoas que haviam vendido as suas fazendas.
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Outra coisa interessante sobre Nestor era que seu terreno estava em chamas. Grande parte da nossa conversa se deu no meio de um campo ardente, olhando para fantasmagóricas pilhas de cinzas em forma de árvore. O fogo foi na verdade o motivo pelo qual havíamos parado para falar com Nestor. Afinal, eu estava ali para ver o desmatamento, e se um campo de árvores queimadas não era desmatamento, não sabia mais o que desmatamento era. E de fato eu não sabia. Na Amazônia, o desmatamento é um assunto desanimadoramente confuso.
No caso do Nestor, por exemplo, você poderia pensar que um toco carbonizado é um toco carbonizado, mas não é assim. Nestor estava apenas alternando a colheita. A coivara tem um aspecto assustador, mas é parte da rotina anual de um agricultor. O pedaço de terra que Nestor estava queimando já havia sido cultivado várias vezes. Ele iria plantar mandioca e, em seguida, deixar que o campo se cobrisse de árvores para descansar.
Mas o foco da questão está no que impulsiona os novos desmatamentos, o que não é tão simples quanto apontar para quem está segurando uma motosserra. Há quem corte árvores com incentivos do governo para áreas “subdesenvolvidas”. Um agricultor de soja pode ter chegado no norte porque a terra era muito cara em seu estado de origem, ou porque a Cargill se estabeleceu no Pará. Uma série de coisas pode incentivar o desmatamento, mesmo à distância. Um agricultor de soja usando terras anteriormente cultivadas poderia argumentar que não está destruindo a Amazônia, mas e se o antigo pequeno agricultor que vendeu a ele a sua terra vai em busca de terra nova em outro lugar? A quem deve ser atribuída a destruição?
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Soja-485x323Fomos encontrar os fazendeiros de soja. “Descobri que a terra era barata no Pará”, disse Luiz. “Então, compramos e viemos cultivar a terra. É por isso que estamos aqui.” Luiz era um homem baixo de sessenta e poucos anos, com olhos lacrimejantes e andar titubeante. Ele era um fazendeiro de soja, com 300 hectares sob o arado, próximo à terra de Nestor. Tive a impressão de que estava bêbado. “Você teria se mudado para cá sem o porto da Cargill?” Adam lhe perguntou. Luiz franziu a testa e balançou a cabeça enquanto Gil traduzia. “O que eu faria aqui?” Ele tinha vindo pela mesma razão que os outros fazendeiros de soja. Ele sabia que, enquanto o preço da soja era o mesmo no Pará ou em Mato Grosso, o custo do transporte aqui era muito menor. “Só estamos aqui por causa da Cargill”, ele disse.
“Os ambientalistas.” Ele cuspiu a palavra. Ambientalistas. “Eles vieram com essas leis proibindo desmatar mais do que 20% da área.” Ele tinha sido forçado a arrendar terras adicionais, a fim de ter um cultivo grande o suficiente. Isso não fazia sentido para ele. A terra era rica e plana e deveria ser cultivada. E a floresta que havia na sua propriedade nem era mata virgem, ele disse. Não havia madeira de lei remanescente, macacos ou frutas. Para ele, a lei deveria pressupor que a floresta a ser preservada fosse uma floresta de verdade.
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A Cargill autorizou a nossa visita. Foi uma semana de telefonemas e emails para São Paulo e Minnesota para convencê-los de que éramos inofensivos. Tínhamos finalmente acesso ao terminal da maior empresa privada dos Estados Unidos na Amazônia, responsável pela bolha da soja de Santarém, marco zero da devastação da floresta amazônica. Em termos de destruição de habitats e mudança climática, aquele era o templo da perdição.
Ou não. Adam diz que eu não posso falar assim porque não é verdade. A soja, ele diz, nunca foi a causa principal do desmatamento na Amazônia. Nunca foi responsável por mais do que um décimo da sua destruição. Um mísero décimo! O frenesi da soja no Pará dominou a mídia e os ambientalistas mas, quando olhamos para a Amazônia como um todo, a soja não se iguala ao desmatamento causado pela pecuária. Na verdade, mesmo a coivara praticada por agricultores como Nestor conta mais para o desmatamento do que a soja. O que significa que talvez eu devesse ter apresentado Nestor como um vilão (apesar dele ter sido amigável e nos vendido cerveja barata) e devesse ter sido simpático ao Luiz, apesar dele ter cambaleado e gritado como um bêbado idiota.
Por que, então, tanto auê em torno da soja? A resposta, quem sabe, é que a soja entrou em cena com uma velocidade assustadora – e que, com a Cargill, os ambientalistas encontraram um alvo concreto. Em 2006, o Greenpeace divulgou o relatório Eating up the Amazon [“Comendo a Amazônia”], chamando a atenção para a Cargill. O relatório rastreou o cultivo da soja em terras desmatadas e seu caminho, através do porto da Cargill, para a Europa, onde ela termina como ração para frango e boi vendidos nos McDonald’s. Isso estabeleceu o problema de uma maneira poderosa. Afinal, um ativista que pode gritar “J’accuse!” a um McNugget é um ativista que conseguiu focar bem o caso. Além disso, a conexão com o McNugget abria dois pontos fracos estratégicos para o Greenpeace atacar: o terminal de Santarém e a diretoria do McDonald’s.
Em poucas semanas, a pressão tinha atingido toda a cadeia de abastecimento. A Cargill sentou-se à mesa de negociação, juntamente com todos os outros compradores importantes de soja brasileira. Sob os termos do acordo, conhecido como a moratória da soja, a Cargill não compraria soja de qualquer fazenda onde uma única árvore tivesse sido cortada a partir do início da moratória. O estranho da moratória da soja é que ela parece ter de fato funcionado. O desmatamento ocasionado pela soja na área de Santarém parou. Sei disso porque Adam me mostrou um gráfico, com base em dados do governo brasileiro.
Isso já era demais.
De qualquer modo, tivemos nossa chance. Adam, Gil e eu aparecemos no terminal da Cargill e fomos levados até uma sala de recepção climatizada onde aguardamos o gerente do terminal. Em uma vitrine em um canto da sala, uma taça de vidro com grãos de soja estava ao lado de garrafas de óleos de cozinha, potes de maionese e outros produtos alimentícios derivados de produtos da Cargill.
Por razões de segurança e precaução, não seria permitida a nossa entrada na usina. Nem veríamos um único grão de soja, além daqueles na vitrine da sala de recepção. Em vez disso, o gerente nos conduziu em um passeio em torno do centro de armazenagem, mostrando a baia dos caminhões – ali, também, a segurança era uma prioridade – e outras áreas completamente entediantes, sem nada de soja.
Em um trecho de concreto molhado entre a água e o centro de armazenamento, o gerente do terminal parou e virou-se para nós. “Aqui nós temos uma floresta para a preservação de árvores nativas”, disse. Olhamos em volta. Do que ele estava falando? À nossa esquerda havia um pequeno triângulo de grama com uma dúzia de árvores esmirradas. Só umas duas ou três podiam realmente ser chamadas de árvores. O resto era pouco mais do que uns ramos semi-nus saindo do chão. Essa era a floresta deles? “Tivemos algumas dificuldades no cultivo das árvores”, ele disse. “Mas cuidamos muito bem delas.”
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A Cargill, o Greenpeace e a Nature Conservancy concordaram que a moratória da soja foi um sucesso. Mas ela havia deixado alguns negócios inacabados. Por um lado, havia a questão da legalidade duvidosa do terminal da Cargill. E os pequenos agricultores? Isso, mais do que qualquer outra coisa, explica o abismo entre uma ONG internacional como o Greenpeace e um ativista local como o padre Sena. Na opinião dele, o Greenpeace e a Nature Conservancy tinham assegurado um acordo fraco. A redução do desmatamento, segundo ele, era devida à desaceleração econômica global, não à moratória. E mesmo que a moratória tivesse conseguido parar com que os produtores de soja cortassem a floresta, o que dizer dos pequenos agricultores que eles haviam deslocado? Eles eram muito mais difíceis de rastrear. Enquanto isso, nada estava sendo feito para atenuar os danos já existentes e o terminal da Cargill continuava lá.
Quando Adam, depois, rastreou Andre Muggiati, um ativista do Greenpeace da Amazônia, ele quase admitiu isso. “Nós sempre soubemos que em algum momento teríamos que sentar à mesa com a Cargill para chegar a um acordo. Se você pedir o impossível, nunca chega a uma solução.” O ativismo não poderia fazer muito mais que isso. “O capitalismo e a livre iniciativa são legais no Brasil”, disse ele. “Você não pode chegar para a Cargill e dizer: ‘Vá embora!’. Você não pode chegar para os fazendeiros de soja e dizer: ‘Devolvam a terra aos camponeses.’”
Quem poderia discordar de Muggiati? Mas, por mais sensatas que fossem as suas palavras, elas poderiam ter saído da boca da própria Cargill, o que sugere paralelos desconfortáveis entre um gigante do agronegócio e as ONGs ambientalistas que se opunham a ele. É difícil não encontrar alguma ironia em um cara do Greenpeace invocando o realismo e o Estado de Direito, enquanto uma boa dose do ativismo público da organização depende justamente do idealismo e do desrespeito estratégico da lei. (Outras Palavras/ #Envolverde/Utopia Sustentável)


terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Cabe todo mundo?


chineses 550 Cabe todo mundo?
Foto: Renan Rosa

No rastro dos 30 milhões de toneladas de soja em grão que o Brasil exportou para a China entre janeiro e agosto de 2014, no valor total de US$ 15 bilhões, foram “transferidos” 69 trilhões de litros de água virtualmente embutidos no produto, como decorrência do cultivo. Tendo como base o consumo hídrico da soja brasileira, calculada pela Water Footprint Network (WFN), o volume representa mais de três vezes a capacidade do reservatório da Hidrelétrica de Itaipu. O número é grandioso, como é, aliás, tudo o que se relaciona aos padrões chineses e sua influência sobre o meio ambiente global. E também reflete o tamanho do desafio enfrentado internamente por aquele país para manter a atual taxa de crescimento econômico com menor dependência do comércio exterior, inclusão social e menos degradação de recursos naturais.
Ao abrigar quase 20% da população do mundo, a China é o país que mais contribui com a pegada de água [1] global, responsável por 16% do total, à frente de Índia, Estados Unidos e Brasil, respectivamente, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Além disso, o apetite chinês suga quase um terço dos recursos vitais que a Terra tem a oferecer. Resultado: se todos os países consumissem e gerassem resíduos em igual nível, seria necessário 1,2 planeta para dar suporte às atividades humanas.
[1] Indicador do volume de água utilizado na produção e consumo de bens e serviços
Com o acelerado crescimento econômico, aumento da renda e intenso processo de urbanização e industrialização, o Gigante Asiático passou a ter o maior déficit ecológico do mundo. Dessa forma, como a multiplicação do nível médio de consumo pelo número de habitantes superou os limites da biocapacidade [2] do país, foi preciso buscar recursos no resto do mundo – assim como ocorreu com os EUA, no passado – para sustentar a população com seus novos estilos de vida.
[2] Área disponível para o país produzir recursos renováveis e absorver emissões de CO2
Para analistas, o futuro socioambiental do planeta dependerá muito do caminho a ser trilhado pela China. Internamente, os atuais planos de governo pretendem reverter a lógica perversa de que quanto mais rico fica o país, mais pobre torna-se o meio ambiente. No caso da água, o iminente risco de escassez disparou o alerta. A necessidade de captar volume cada vez maior para abastecer população, cultivos agrícolas e indústrias exigiu a execução de um dos mais caros e ambiciosos projetos de engenharia em curso no mundo: a transposição dos rios Yang-tsé, Han e Amarelo, ao custo de US$ 79 bilhões, para levar água do Sul para o Norte do país, onde se localiza a grande metrópole, Pequim.
Lá se concentra grande parte da população e dos cultivos agrícolas, mas tem apenas um quinto da água disponível na China. A primeira etapa dos três grandes eixos de canais, com cerca de mil quilômetros na parte Sul, está em fase final para fornecer 1,2 bilhão de metros cúbicos adicionais à capital, com 20 milhões de habitantes. Atualmente, para contornar a escassez, parte expressiva do suprimento provém da exploração de água subterrânea, com drástico esgotamento do lençol freático nos últimos dez anos.
“A disponibilidade hídrica já é considerada nas decisões políticas sobre o crescimento econômico”, afirma Aurélio Padovezi, especialista em restauração florestal que em recente viagem à China pela The Nature Conservancy (TNC) conheceu a realidade do principal manancial de água potável de Pequim: o reservatório Miyun, com área total de 15 mil quilômetros quadrados, já insuficiente para suprir as residências e as atividades econômicas. “Considerando o tamanho da população que precisa matar a sede e comer, o reservatório e as suas bacias hidrográficas são vistos como os mais importantes recursos hídricos a serem protegidos do mundo”, enfatiza Padovezi. Ele lembra as semelhanças entre a capital chinesa e a Região Metropolitana de São Paulo: “A diferença é que lá existe planejamento e não há barreiras políticas, porque as decisões são centralizadas”.
CAPACIDADE DE REALIZAR
Entre as medidas de proteção está o aumento da cobertura florestal de 9% para 55% nas bacias hidrográficas que abastecem a capital, com meta de atingir 70% no entorno do reservatório Miyun, segundo o especialista. O esforço se integra a uma estratégia mais ampla, definida há mais de duas décadas, para plantio de árvores em larga escala, principalmente na região central do país. “Chama atenção a incrível capacidade da China de realizar, difícil de ver nos demais países emergentes”, conta Beto Mesquita, diretor de estratégia terrestre da Conservação Internacional.
Como integrante de uma expedição de especialistas brasileiros para intercâmbio de experiências sobre florestas com a China, em 2014, Mesquita verificou em campo os resultados do projeto de restaurar 45 milhões de hectares, dos quais 20 milhões já foram plantados com espécies nativas.
O reflorestamento em massa tem o propósito de conter a erosão, sobretudo em áreas montanhosas com alta incidência de chuvas de monções [3], e melhorar as condições ambientais para a agricultura. “As ações são práticas, simples e rápidas, com uso de poucas espécies de árvores, mas bastante efetivas, fazendo crescer florestas até mesmo onde nunca existiram”, diz Mesquita. Após o impulso inicial de grande escala, a atual etapa, na qual entraria a contribuição brasileira, deverá olhar para a melhora da diversidade de espécies, de modo a obter florestas mais robustas e com maior quantidade de biomassa, importante para a gestão de carbono no cenário de possíveis compromissos globais sobre mudanças climáticas.
[3] São torrenciais e estão associadas a ventos sazonais, gerados pela alternância entre as estações úmidas e secas, no Sul e Sudeste da Ásia
O advogado José Ricardo dos Santos Luz, que por cinco anos representou na China o escritório Duarte Garcia, Caselli Guimarães e Terra Advogados, compara: “O país é como um gigante que desce uma ladeira de bicicleta; não pode frear, senão perde o controle e cai”. O dilema é traçar um caminho para continuar pedalando sem impactos ambientais que colocam em risco o bem-estar e a própria sustentabilidade das conquistas econômicas. Apesar da expansão menos veloz do crescimento, verificada nos dois últimos anos, obras de infraestrutura nas cidades continuam em ritmo frenético. A vida urbana sofre com a poluição atmosférica, que em alguns locais chegou a atingir nível 25 vezes superior ao limite de tolerância da Organização Mundial da Saúde. Mas, de uns anos para cá, a governança em relação ao problema foi priorizada para reduzir a ocorrência de doenças respiratórias, a incapacidade para o trabalho e os custos previdenciários para governo e empresas.
Para influenciar positivamente as questões ambientais no resto do mundo, a China precisará adotar normas de sustentabilidade no comércio exterior, sem a visão de que vale apenas o menor preço
A segurança alimentar tornou-se prioridade, após escândalos como o que envolveu leite adulterado, obrigando importação em massa. “Um problema pequeno em outros países pode ganhar grandes proporções na China, por conta da enorme população”, explica o advogado.
O êxodo do campo para as cidades tem mudado o quadro social, fruto de políticas voltadas para a elevação de renda e o aumento do mercado doméstico. Com menos gente na zona rural, é menor a concorrência e o ganho dos camponeses aumenta. Ao mesmo tempo, a geração de maior quantidade de empregos no meio urbano estimula o consumo e a demanda por investimentos em infraestrutura, acelerando o desenvolvimento econômico.
A estratégia populacional compõe um plano de urbanização [4] lançado pelo Comitê Central do Partido Comunista e pelo Conselho de Estado para o período 2014-2020, com ênfase no bem-estar e sustentabilidade ambiental. Um dos objetivos é corrigir discrepâncias envolvendo benefícios sociais, como os incluídos no Hukou – uma espécie de cartão de identidade com o qual a população usufrui de auxílios, como assistência à educação e saúde. Hoje cada chinês que vive no campo recebe do Estado um pedaço de terra para subsistência, mas muitos sublocam a área para terceiros, inclusive empresas, e migram em busca de trabalho e da sorte grande nas cidades, deixando os filhos na zona rural, sob os cuidados dos avós. A artimanha é necessária, porque, se o governo for informado sobre a transferência, a família perde o benefício.
[4] Hoje 53,7% da população chinesa é urbana. A previsão é atingir 60% em 2020, segundo a agência de notícias Xinhuanet. Nos países ricos, a média de habitantes que vivem nas cidades é de 80%
DE VENTO EM POPA
O desenvolvimento da China é amplamente moldado por planos de cinco anos, com metas sociais e econômicas. Um dos destaques do último planejamento (2011-2015) é o quesito sustentabilidade, com ênfase nos investimentos em tecnologias limpas. Na estratégia chamada “Going Global”, na qual as empresas são incentivadas a investir no exterior, a expectativa é a formulação de políticas de crédito verde pelos bancos chineses, considerando efeitos sociais e ambientais de suas operações.
A tendência chega a organismos internacionais de fomento, como o Banco de Desenvolvimento dos Brics. “Haverá o compromisso de complementar a oferta de recursos para projetos de infraestrutura, com base em critérios de desempenho socioambiental”, diz o embaixador Flavio Damico, representante do Departamento de Mecanismos Inter-Regionais do Itamaraty.
Ambientalistas lutam para salvar da extinção o tigre-de-amur, ameaçado pelo sumiço de presas, como veados e javalis, e pela redução do território de vida, no Nordeste da China, fronteira com a Rússia. Hoje há 500 tigres na natureza.
Nesse cenário, a China começa a dar atenção a princípios de melhores práticas internacionais, com adoção de normas mais rigorosas para aperfeiçoar a qualidade e reduzir impactos ao meio ambiente em setores como infraestrutura, mineração, silvicultura e agricultura. A escala da demanda chinesa reflete no planeta como um todo. Como grande importadora de soja [5], por exemplo, qualquer nova exigência de padrão ambiental vai implicar adaptação dos países exportadores – o que significa uma vantagem competitiva para o Brasil, tendo em vista os acordos e mesas-redondas adotados já faz algum tempo para a produção com controle sobre o desmatamento.
[5] A China é o maior comprador da soja brasileira em grão (71% do total exportado)
A adoção de critérios ambientais no intenso comércio exterior chinês mobiliza ONGs internacionais, como o WWF, organização que tem como símbolo global o panda-gigante [6] – espécie só existente na China, hoje protegida por uma rede de 62 reservas naturais, totalizando 3 milhões de hectares, com apoio do governo. As obras de infraestrutura são ameaças constantes. Apesar das ações ambientalistas, a perda de biodiversidade é um dos mais graves impactos de uma história milenar que o país precisa corrigir.
[6] Só restaram 1,6 mil indivíduos da espécie nas regiões Sudeste e central da China
O governo chinês reconheceu os problemas ambientais ligados ao desenvolvimento econômico e os colocou no topo da agenda política. Para ambientalistas, é uma chance que o mundo não pode se dar ao luxo de perder, principalmente no tema “mudança climática”. Como país líder em emissões de carbono, à frente dos Estados Unidos e da Índia, o plano para inverter a curva da liberação de carbono na atmosfera a partir de 2030, conforme comunicado em 2014, tem potencial de influenciar um futuro acordo climático e acirrar a competição pelas oportunidades de mercado da economia verde. “O Brasil ficou para trás no jogo e deixar as soluções para depois pode ficar muito caro”, adverte José Goldemberg, professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP).
“Apesar do regime político fechado, a classe média que ascendeu na China já considera a poluição [7] como algo insuportável, pressionando por mudanças”, analisa Goldemberg, ao lamentar que no Brasil, onde na última década a população mais pobre também conquistou acesso ao consumo, “a ficha ainda não caiu”.
[7] É um dos principais temas tratados nas redes sociais chinesas, como a Sina Weibo (similar ao Twitter)
MENOS CALORIAS
Para Gilmar Masiero, professor da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, a dianteira dos chineses tem uma explicação histórica: “Eles desenvolveram a indústria e a economia a partir da lição dos coreanos e japoneses, só que de uma maneira muito mais veloz, e é natural que a busca por soluções para reverter impactos ambientais seja também mais rápida em relação ao que fazem os demais emergentes”. Na análise de Masiero, “em 30 anos, cerca de 400 milhões de habitantes foram incorporados ao mercado de consumo na China e o mundo deve se adaptar a isso sem catastrofismo”.
A expansão produtiva para outras regiões do planeta, com ocupação de novas fronteiras, é uma saída. “Descentralizar a produção para torná-la mais eficiente e menos impactante é uma reflexão da atualidade na China”, afirma Carlos Rossin, líder de sustentabilidade da PwC Brasil. Outro aspecto em debate é até que ponto a falta de espaço para plantar e as restrições a cultivos agrícolas, devido a riscos ambientais, poderão influenciar a alimentação chinesa, que se torna mais calórica, ao estilo europeu e americano. “Se o padrão de consumo naquele país chegar ao nível atual das nações ricas, o planeta entrará em colapso”, prevê Rossin. Ele conclui: “Algum lado terá que abrir mão e reduzir o apetite”.
Para Rossin, falta maior abertura e engajamento da China para o debate sobre o valor das cadeias de insumos, principalmente no que se refere à origem socioambiental da matéria-prima embutida nos produtos que vende mundo afora. Internamente, o lixo gerado pela expansão do consumo não ganhou até o momento uma solução à altura. Não há cooperativas de catadores e a coleta seletiva de resíduos é desorganizada, apesar de haver uma vasta rede de fábricas recicladoras, abastecidas por sucateiros chineses e por resíduos comprados no exterior – até mesmo grande quantidade de lixo eletrônico [8], com risco de contaminação de trabalhadores e do ambiente por metais pesados.
[8] 70% do lixo eletrônico gerado no mundo se destina à China
“Com a expansão da demanda interna, o governo está querendo mudar a atual realidade, inclusive investindo em grandes incineradores para geração de energia a partir do lixo nas cidades de maior porte”, diz Fernando von Zuben, diretor de meio ambiente da Tetra Pak.
Como o poder é centralizado e tudo depende das regras do governo, há pouco espaço para as empresas se organizarem e promoverem a reciclagem como ocorre no Brasil. “Mas um dia a barreira será superada, assim como ocorreu com as emissões de carbono”, prevê o diretor. Para ele, apesar de tantas diferenças culturais, o modelo brasileiro de reciclagem poderia ser adaptado à realidade chinesa. Passo importante seria dado em abril, quando uma delegação daquele país visitaria o Brasil, Estados Unidos e Espanha para conhecer como funciona a coleta seletiva de resíduos, mas a viagem foi adiada. “Tudo na China tem seu tempo”, ressalta Von Zuben.
Com o maior acesso a bens materiais, a questão ideológica passou a ser secundária no país. “O sonho chinês, uma paródia ao velho conhecido ‘sonho americano’, é melhorar cada vez mais as condições de vida, mantendo a economia equilibrada na atual faixa de crescimento de 7% ao ano”, analisa José Augusto Guilhon, integrante do Grupo de Estudos Brasil-China, do Fórum Pensamento Estratégico, da Universidade de Campinas. Mas não é uma tarefa fácil, pois há vozes discordantes no alto escalão do poder. “Manter a economia galopando como antes, sem restrições ambientais, significa mais obras e verbas que podem ser manipuladas, com margem à corrupção”, explica o especialista.
Ele reforça: “O desejo por qualidade de vida está muito presente entre os chineses, puxado por questões socioambientais, com destaque para o clima”. De fato, a China indica que mudou de direção nesse campo, mas, na opinião de Guilhon, “ainda está longe do ideal e nenhum efeito prático deverá ser sentido nos próximos dez ou quinze anos”. Pressões sobre o governo são limitadas, porque os movimentos sociais independentes são poucos e inexpressivos. A força está nos novos conceitos de bem estar e felicidade que povoam o imaginário chinês após a febre do crescimento econômico com índices de dois dígitos, verificado na última década. É a principal motivação para o gigante acordar de vez e os planos saírem do discurso. site Página 22/Utopia Sustentável.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Agropecuária é responsável por 90% do desmatamento ilegal no Brasil



soja Agropecuária é responsável por 90% do desmatamento ilegal no Brasil
Plantação de soja no Paran é, uma das principais responsáveis pelo desmatamento ilegal. Foto: Divulgação
Derrubada irregular dá lugar ao gado e à soja. Grande parte dos produtos é destinada à exportação para Rússia, China, EUA e União Europeia, revela estudo.
Entre 2000 e 2012, a agropecuária foi responsável por metade do desmatamento ilegal nos países tropicais. No Brasil, até 90% da derrubada ilegal da floresta neste período ocorreu para dar lugar ao gado e à soja. Os números fazem parte de um estudo da organização Forest Trends, divulgado na quinta-feira 11.
Segundo o relatório da ONG americana baseada em Washington, as situações mais críticas foram registradas no Brasil e na Indonésia. No Brasil, parte considerável dos produtos cultivados nessas áreas ilegais vai para o mercado externo: até 17% da carne e 75% da soja. Os destinos incluem Rússia, China, Índia, União Europeia e Estados Unidos.
Brasil e Indonésia são os maiores produtores do mundo de commodities agrícolas para a exportação. O que é colhido nas terras desmatadas ilegalmente nesses países vai parar em cosméticos, produtos domésticos, alimentos e embalagens.
“Naturalmente, os países compradores também são responsáveis. Afinal, eles estão importando e consumindo produtos sem prestar atenção em como foram produzidos. Consequentemente, estão criando uma demanda. E as companhias envolvidas no negócio estão lucrando”, avalia Sam Lawson, principal autor do estudo e consultor de instituições como o Banco Mundial e Greenpeace. Ele calcula que esse tipo de comércio gere uma receita de 61 bilhões de dólares, cerca de 140 bilhões de reais.
A pesquisa foi feita ao longo dos últimos três anos e reuniu dados publicados em mais de 300 artigos científicos, informações da Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) e dados de satélite.
Ao mesmo tempo em que o estudo aponta o Brasil como líder nesse tipo de ilegalidade, ele reconhece que o país reduziu dramaticamente o desmatamento desde 2004. A taxa de derrubada ilegal na Amazônia caiu mais de 70% se comparada aos índices medidos entre 1996 e 2005.
“No Brasil, as florestas também estão dentro de propriedades privadas. E, em muitos casos, o único documento que o produtor rural tem para justificar sua plantação é um certificado de posse da terra. Eles não têm, necessariamente, a permissão para cortar a floresta para dar lugar a essa plantação”, diz Lawson.
Francisco Oliveira, diretor do Departamento de Políticas de Combate ao Desmatamento na Amazônia, do Ministério de Meio Ambiente, diz que a apropriação irregular de terras públicas, ou “grilagem”, é uma das principais causas do desmatamento ilegal. “Um grileiro nunca vai buscar uma autorização de desmatamento”, acrescenta.
O corte da mata também é feito por proprietários regulares de terra. Mas nem todos respeitam a lei: muitos retiram a vegetação nativa para expandir plantações sem a devida autorização, que é dada pelo governo estadual. Para aumentar o rigor na fiscalização, o governo federal pretende exigir que os estados repassem as autorizações de supressão de vegetação concedidas aos proprietários.
A legislação nacional obriga as propriedades rurais privadas a manter no mínimo 20% da vegetação natural, a chamada Reserva Legal. Por outro lado, ainda não existem dados oficiais que mostrem quem cumpre a lei. A esperança de separar “o joio do trigo” está no Cadastro Ambiental Rural (CAR), introduzido com o novo Código Florestal para ajudar no processo de regularização.
Esse cadastro tem que ser feito por todo proprietário e trará informações georreferenciadas do imóvel, com delimitação das Áreas de Proteção Permanente, Reserva Legal, entre outros. “A pessoa sabe que entrou para um sistema e vai tomar os devidos cuidados para não desrespeitar a legislação, e quer ser respeitada por isso”, analisa Oliveira.
Cinco campos de futebol de florestas tropicais são destruídos a cada minuto para suprir a demanda por commodities agrícolas. A FAO também vê esses números com preocupação. A organização estima que, até 2050, o mundo precisará de cerca de 60 milhões de hectares extras para suprir a demanda por comida.
Para Keneth MacDicken, especialista em assuntos florestais da FAO, seria possível fazer essa expansão sem agredir as florestas. “Aumentar a produtividade, melhorar as técnicas e diminuir o desperdício são fundamentais”, diz.
Para acabar com a produção agropecuária em terras desmatadas ilegalmente, é importante mostrar que a legalidade é rentável. “Nesse processo, empresas como a Embrapa são muito importantes. Porque elas ajudam os proprietários rurais a produzir de forma mais eficiente e mais rápida”, exemplifica MacDicken.
Além do aumento na fiscalização e vigilância por satélite, Oliveira, do ministério de Meio Ambiente, aposta na parceria com produtores para mostrar que o consumidor também está ficando mais exigente. “Os compradores de soja no mercado internacional não estão querendo atrelar o nome ao desmatamento ilegal na Amazônia.” Essa percepção criou a chamada “moratória da Soja”, em que produtores se comprometeram a não estender o cultivo para áreas desmatadas.
Lawson só vê uma saída: “Nada vai funcionar se os governos não tomarem providências contra a ilegalidade”. O pesquisador admite que, hoje, o tema é mais discutido entre produtores e consumidores do que há dez anos. No entanto, se os números do desmatamento associado à expansão da agropecuária ainda são altos, a conclusão é que “esse combate ainda não está sendo feito como deveria”.
* Publicado originalmente pela Deutsche Welle e retirado do site Carta Capital.
(Carta Capital)