Mostrando postagens com marcador ditadura. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador ditadura. Mostrar todas as postagens

domingo, 6 de novembro de 2016

Hildegard Angel: “É meu dever dizer aos jovens o que é um golpe de estado”





ditadura 64


Há cheiro de 1964 no ar. Não apenas no Brasil, mas também nas vizinhanças. Acho então que é chegada a hora de dar o meu depoimento.
Dizer a vocês, jovens de 20, 30, 40 anos de meu Brasil, o que é de fato uma ditadura.
Se a Ditadura Militar tivesse sido contada na escola, como são a Inconfidência Mineira e outros episódios pontuais de usurpação da liberdade em nosso país, eu não estaria me vendo hoje obrigada a passar sal em minhas tão raladas feridas, que jamais pararam de sangrar.
Fazer as feridas sangrarem é obrigação de cada um dos que sofreram naquele período e ainda têm voz para falar.
Alguns já se calaram para sempre. Outros, agora se calam por vontade própria. Terceiros, por cansaço. Muitos, por desânimo. O coração tem razões…
Eu falo e eu choro e eu me sinto um bagaço. Talvez porque a minha consciência do sofrimento tenha pegado meio no tranco, como se eu vivesse durante um certo tempo assim catatônica, sem prestar atenção, caminhando como cabra cega num cenário de terror e desolação, apalpando o ar, me guiando pela brisa. E quando, finalmente, caiu-me a venda, só vi o vazio de minha própria cegueira.
Meu irmão, meu irmão, onde estás? Sequer o corpo jamais tivemos.
Outro dia, jantei com um casal de leais companheiros dele. Bronzeados, risonhos, felizes. Quando falei do sofrimento que passávamos em casa, na expectativa de saber se Tuti estaria morto ou vivo, se havia corpo ou não, ouvi: “Ah, mas se soubessem como éramos felizes… Dormíamos de mãos dadas e com o revólver ao lado, e éramos completamente felizes”. E se olharam, um ao outro, completamente felizes.
Ah, meu deus, e como nós, as famílias dos que morreram, éramos e somos completamente infelizes!
A ditadura militar aboletou-se no Brasil, assentada sobre um colchão de mentiras ardilosamente costuradas para iludir a boa fé de uma classe média desinformada, aterrorizada por perversa lavagem cerebral da mídia, que antevia uma “invasão vermelha”, quando o que, de fato, hoje se sabe, navegava célere em nossa direção, era uma frota americana.
Deu-se o golpe! Os jovens universitários liberais e de esquerda não precisavam de motivação mais convincente para reagir. Como armas, tinham sua ideologia, os argumentos, os livros. Foram afugentados do mundo acadêmico, proibidos de estudar, de frequentar as escolas, o saber entrou para o índex nacional engendrado pela prepotência.
As pessoas tinham as casas invadidas, gavetas reviradas, papéis e livros confiscados. Pessoas eram levadas na calada da noite ou sob o sol brilhante, aos olhos da vizinhança, sem explicações nem motivo, bastava uma denúncia, sabe-se lá por que razão ou partindo de quem, muitas para nunca mais serem vistas ou sabidas. Ou mesmo eram mortas à luz do dia. Ra-ta-ta-ta-tá e pronto.
E todos se calavam. A grande escuridão do Brasil. Assim são as ditaduras. Hoje ouvimos falar dos horrores praticados na Coreia do Norte. Aqui não foi muito diferente. O medo era igual. O obscurantismo igual. As torturas iguais. A hipocrisia idêntica. A aceitação da sobrevivência. Ame-me ou deixe-me. O dedurismo. Tudo igual. Em número menor de indivíduos massacrados, mas a mesma consistência de terror, a mesma impotência.
Falam na corrupção dos dias de hoje. Esquecem-se de falar nas de ontem. Quando cochichavam sobre “as malas do Golbery” ou “as comissões das turbinas”, “as compras de armamento”. Falavam, falavam, mas nada se apurava, nada se publicava, nada se confirmava, pois não havia CPI, não havia um Congresso de verdade, uma imprensa de verdade, uma Justiça de verdade, um país de verdade.
E qualquer empresa, grande, média ou mínima, para conseguir se manter, precisava obrigatoriamente ter na diretoria um militar. De qualquer patente. Para impor respeito, abrir portas, estar imune a perseguições. Se isso não é um tipo de aparelhamento, o que é, então? Um Brasil de mentirinha, ao som da trilha sonora ufanista de Miguel Gustavo.
Minha família se dilacerou. Meu irmão torturado, morto, corpo não sabido. Minha mãe assassinada, numa pantomima de acidente, só desmascarada 22 anos depois, pelo empenho do ministro José Gregori, com a instalação da Comissão dos Mortos e Desaparecidos Políticos no governo Fernando Henrique Cardoso.
Meu pai, quatro infartos e a decepção de saber que ele, estrangeiro, que dedicou vida, esforço e economias a manter um orfanato em Minas, criando 50 meninos brasileiros e lhes dando ofício, via o Brasil roubar-lhe o primogênito, Stuart Edgar, somando no nome homenagens aos seus pai e irmão, ambos pastores protestantes americanos – o irmão, assassinado por membro louco da Ku Klux Klan. Tragédia que se repetia.
Minha irmã, enviada repentinamente para estudar nos Estados Unidos, quando minha mãe teve a informação de que sua sala de aula, no curso de Ciências Sociais, na PUC, seria invadida pelos militares, e foi, e os alunos seriam presos, e foram. Até hoje, ela vive no exterior.
Barata tonta, fiquei por aí, vagando feito mariposa, em volta da fosforescência da luz magnífica de minha profissão de colunista social, que só me somou aplausos e muitos queridos amigos, mas também uma insolente incompreensão de quem se arbitrou o insano direito de me julgar por ter sobrevivido.
Outra morte dolorida foi a da atriz, minha verdadeira e apaixonada vocação, que, logo após o assassinato de minha mãe, precisei abdicar de ser, apesar de me ter preparado desde a infância para tal e já ter então alcançado o espaço próprio. Intuitivamente, sabia que prosseguir significaria uma contagem regressiva para meu próprio fim.
Hoje, vivo catando os retalhos daquele passado, como acumuladora, sem espaço para tantos papéis, vestidos, rabiscos, memórias, tentando me entender, encontrar, reencontrar e viver apesar de tudo, e promover nessa plantação tosca de sofrimentos uma bela colheita: lembrar os meus mártires e tudo de bom e de belo que fizeram pelo meu país, quer na moda, na arte, na política, nos exemplos deixados, na História, através do maior número de ações produtivas, efetivas e criativas que eu consiga multiplicar.
E ainda há quem me pergunte em quê a Ditadura Militar modificou minha vida!
 Por DCM-Utopia Sustentável do blog de Hildegard Angel

terça-feira, 31 de março de 2015

31 de março de 1964: um ano para não ser lembrado, nem esquecido


As manifestações de março trouxeram de volta alguns fantasmas latentes na memória da sociedade brasileira, entre eles pedidos de intervenção e golpe militar. Apesar de considerar democrática a livre expressão de pensamento, tais manifestações demonstram, além de desconhecimento do que ocorreu naquele sombrio período, o desprezo pelo bem mais precioso de um país, conquistado com o sangue de tantos brasileiros: a democracia.

Mostra, também, a desilusão da população com os vários governos civis que sucederam os militares e a falta, sobretudo, de prioridades nas escolhas de projetos que atendam às reais necessidades de nosso povo. 

Mas é a educação, o item mais preocupante e sofrível a ser enfrentado no longo elenco de carências do país pós redemocratização.  Dela dependerá o futuro da nação, o discernimento necessário para as mentes daqueles que arcarão com a responsabilidade das melhores escolhas e caminhos a seguir. 

Há 51 anos atrás, nossa constituição foi rasgada pelo golpe militar.  Dali em diante, muita coisa mudou.  E para pior.  Corações e mentes foram silenciados pelo regime imposto à força.  Com uma falsa democratização do acesso à educação no Brasil, vinculou-se a educação pública aos interesses de mercado, estimulando, assim, a privatização do ensino.




Se antes do golpe a oferta de vagas era maciçamente pública, hoje 75% são preenchidas pelas instituições privadas.  O pesquisador Dermeval Saviani, professor emérito da UNICAMP, em artigo publicado nos Cadernos Cedes, intitulado “O Legado Educacional do Regime Militar”, retraçou a história da reforma educacional implantada pelo regime, começando em 1967, que eliminava a exigência de um gasto mínimo com educação – restabelecido em 1969, mas somente na esfera municipal -, passando pela Lei da Reforma Universitária de 1968, pelo decreto de regulamentação dessa lei, de 1969, e pela lei de 1971 que, como resume o artigo, “unificou o antigo primário com o antigo ginásio, criando o 1º grau de oito anos e instituiu a profissionalização universal e compulsória no ensino de 2º grau, visando atender à formação de mão de obra qualificada para o mercado de trabalho”.

Esse processo, diz Saviani, gerou um “cruzamento perverso entre as redes públicas e privadas”.  Com isso, os grupos privados atuantes no ensino foram beneficiados. E a educação se mercantilizou como banana, com universidades oferecendo “Hensino com H maiúsculo” em cada esquina. E dane-se o povo e o país.

O salto de qualidade tão sonhado e tão necessário, passa por uma revolução na educação nacional.  Nesses trinta anos que sucederam ao governo de exceção dos militares, não fizemos qualquer reforma na estrutura educacional que proporcionasse avanços significativos consistentes de qualidade que garantisse vislumbrarmos um cenário de ponta para o Brasil. 

Por tudo isso, não enxergo outra saída que não contemple a educação como prioridade zero na busca da excelência.  Talvez assim tenhamos um caminhar sólido e seguro, sem fantasmas a nos rodear a cada solavanco proporcionado por políticas equivocadas de governos, normal em qualquer democracia.
Talvez assim, nossos jovens consigam separar o joio do trigo veiculado pela grande imprensa e saber que qualquer governo democrático e legitimamente eleito, por pior que seja, sempre vai ser melhor que a ditadura imposta por um golpe de estado.

Talvez assim, um dia consigamos até punir os torturadores e zerar essa história.

Abraços Sustentáveis


Odilon de Barros